terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Um dia cor de laranja.

Há muito tempo que eu amargo as minhas decepções da vida na cozinha. Porque eu sei o que fazer, gosto de fazer e meu jeito mais simples de externalizar sentimentos, confusões e fazer com que dentro as coisas tenham ordem.
E um dia desses, eu saí do (ex)trabalho muitíssimo cansada e, mais que isso, sem energias, triste e só. Para piorar, eu estava sem Amélie Poulain há mais de um ano (o engraçado é que algumas obras me fazem agir de modo muito diferente. Quando leio a História sem fim, a minha letra muda, mas isso é pano pra outra manga. E Amélie me faz fazer coisas bonitas e bobas, como colar post-its docezinhos no elevador) e sem ela, não tinha graça fazer amelices.
Precisada de Amélie que eu estava, só havia uma coisa a fazer. Crème brûlée. Não que fosse meu doce preferido ou coisa assim, a bem da verdade é que eu nunca tinha comido um desses, nem tinha a mais remota idéia de como se fazia. Mas a cena da casquinha sendo quebrada, um dos prazeres da srta. Poulain me dava certeza que aquele docinho seria capaz de salvar a minha noite.
Chamei os amigos, comprei os melhores ingredientes que me foram possíveis e os potinhos, fiz uma quiche, coloque Yann Tiersenn pra tocar... e deu errado, deu muito errado. E foi só na terceira tentativa que deu certo. E começou a angariar fãs, dos mais diversos. Fiquei feliz por ter conseguido acertar na receita, achei que seria uma das que me faz chorar e ter certeza de que comerei pão com ovo pelo resto da minha existência.
Mas eu achei que ainda faltava qualquer coisa. Respirei fundo, com medo de cometer uma pequena heresia, mas tentei e acertei lindamente. Creme burlesco [sic elvis] com amoras.
s u b l i m e
E chega de jogar confetes em cima de mim mesma. Vamos a receita.


- amoras amassadas e polvilhadas de açúcar
- 4 gemas
- quase uma xícara de açúcar
- 350 ml de leite
- 200 ml de creme de leite fresco
- 2 colheres de sopa de baunilha (o ideal é ferver a fava da baunilha com o leite, mas...)

Antes de começar, deixe as amoras amassadinhas e polvilhadas de açúcar, para que fiquem caudalosas.
Pois bem, essa é uma das receitas que eu faço que mais precisa de frescurinhas de cozinha. Panelinha de fundo falso, maçarico, fouet... Mas eu (ainda) não tenho todos. Só o fouet, que vale a pena comprar, e nem é tão caro. Caso você não tenha um, use um garfo, que dá na mesma, só dá um pouco mais de trabalho.
Coloque as gemas numa tigela funda, e bata com o fouet; o creme deve ficar esbranquiçado. Acrescente o leite (entre morno e quente), bata até formar uma espuma, deixe descansar para que, quando você passar uma colher, a espuma 'descole' do liquido.
Agora é a hora da panelinha de fundo falso, que você pode improvisar um banho-maria com uma caneca e uma panela. Misture sem parar e quando a espuma estiver reintegrada, acrescente o creme de leite, sem nunca parar de mexer - para que não ferva. O ponto é fácil de ser 'encontrado': passe o dedo de comprido pela colher, é preciso que se forme um 'caminho' e que não escorra.
Feito isso, coloque cerca de uma colher de sopa de amoras no fundo de cada um dos 5 ou 6 potinhos que possam ir ao forno, sobre elas despeje o creme delicadamente, para que as duas partes não se misturem. Hora do forno: coloque os potinhos numa forma com água, uma espécie de banho-maria no forno. Temperatura média-alta. De novo eu não sei o tempo, mas cerca de 40 minutos, até que o creme esteja consistente e levemente dourado. Retire do forno e deixe esfriar em temperatura ambiente.
Haja paciência: 6 horas de geladeira, mais ou menos. É claro que vez ou outra da pra fazer um truque, mas é importante que ele esteja bem gelado ao servir, quando morno fica bastante enjoativo.
E aqui, se você tem um maçarico, eu não sei como se faz a coisa. Se você não tem, escolha uma colher que a sua mãe não vai sentir muita falta, e que ela não tenha cabo de plástico. Coloque na chama do fogão até que ela fique incandescente. Polvilhe o açúcar (não muito antes, para que ele não umedeça), encoste a colher no açúcar e gire rapidamente o potinho. É possível que o açúcar pegue fogo, seja breve para que não queime demais, para não amargar.
Coloque o Yann Tiersenn pra rolar, sirva, e espere os elogios. Fatalmente virão!

Essa é a sobremesa mais risonha que eu já comi. Se o seu parceiro de mesa não der ao menos um sorriso, fuja dessa pessoa, aposto que ela não tem coração.

2 comentários:

a Lu! disse...

E pra não dizer que 'sem você as emoções de hoje são a pele morta das emoções do passado', venho por meio deste dizer-te que minha cozinha sem você é uma vida sem o caos. LITERALMENTE.

ane. disse...

amoras!